domingo, 25 de outubro de 2009

O "S" da Fiesp (ou Como ler uma matéria de O Globo)

SÃO PAULO - Nascido na classe média paulistana, Paulo Skaf, 54 anos, se diz um outsider da indústria, mas concentra cargos que o tornaram o porta-voz de pelo menos metade do PIB nacional, a partir da presidência da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo). Recém-filiado ao PSB - cujo princípio, pelo menos oficialmente, é a socialização inclusive dos meios de produção -, Skaf quer ser candidato ao governo paulista, caso o deputado Ciro Gomes (PSB) dispute mesmo a Presidência da República. Mas sem ideologias. Segundo ele, o "S" do socialismo de seu partido é só "uma letrinha", que aparece em quase todas as legendas. É o que contou à Soraya Aggege em reportagem na edição deste domingo do jornal O GLOBO.

- São novos tempos. As pessoas perguntam como pode o presidente da Fiesp se filiar a um partido socialista. Ora, todos os partidos têm um "S", até o PSDB tem um. Não vivemos mais o tempo da luta de classes. Estamos no século XXI. Os empresários querem a simpatia da sociedade e apostam em responsabilidade social, ambiental - afirma Skaf.

Na opinião do homem que preside a Fiesp, é vice-presidente da CNI (Confederação Nacional da Indústria), membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, o Conselhão, presidente do Senai e do Sesi, a ideologia não cola mais nos novos tempos.

- A população não quer pegar letrinha de partido. Quer segurança, emprego, saúde, educação. Seriedade, honestidade e boa gestão. Para mim, que tenho o vírus da política desde moleque, importa que haja democracia. Não é ideologia, estamos no século XXI, tempos em que as pessoas têm oportunidades mais iguais disse.

Retirado de O Globo.

De tudo, destaco três coisas, sendo que a terceira explica as duas primeiras:

1- "Não vivemos mais o tempo da luta de classes."

2-" ... a ideologia não cola mais nos novos tempos."

3- "... porta-voz de pelo menos metade do PIB nacional..."

sábado, 24 de outubro de 2009

Testamento

"Ao longo da vida, não acumulei muitas posses. Na verdade, pensei sempre que poderia me desfazer de tudo antes do derradeiro tango. Mas a leitura desta carta-testamento é sinal de que a viagem foi feita de forma inesperada. Sendo assim, deixo os seguintes bens às únicas pessoas que poderiam, com dignidade, recebê-los:

1- A casa em Arraial do Cabo, cidade onde vivi tranqüilamente meus últimos anos e na qual cultivei inestimáveis amizades, fica para meu filho Pedro. Seus dois cômodos não constituem propriamente um palácio, mas creio que será de bom proveito para passar os fins de semana ou períodos de repouso.

2- O fusca azul celeste, ano 73, fica para meu neto Pedrinho, que já completou 18 anos e pode, enfim, usar sua carta para dirigir uma verdadeira máquina, prodígio mecânico da indústria alemã.

3- A minha poupança, que não é grande coisa, também fica para meu neto Pedrinho. Creio que seu pai, engenheiro bem sucedido, não verá grande valor nessas merrecas guardadas debaixo do colchão (na verdade, estão na minha conta do banco). Pedrinho, use para viajar.

4- Por último, meus mais preciosos bens, deixo todos os livros, reunidos durante longos anos e que hoje somam uma quantidade justa para chamar biblioteca, para meu filho Pedro. Sei que você nunca deu grande importância aos clássicos e às minhas afinidades teórico-literárias, mas penso que minha partida pode servir como último incentivo para que tente enxergar o mundo além das matemáticas. O inventário de todas as obras está no caderno dentro da gaveta, embaixo da vitrola.

Pensei que estas talvez sejam minhas últimas palavras. Para os que não me conheceram, não poderia dizer tudo. Para os que me conheceram, não precisaria dizer nada. Meus filho e neto, gostaria apenas de afirmar mais uma vez que sua mãe e avó foi a coisa mais importante de toda a minha vida. Sabem que há muito tempo não acredito em deus, mas confesso que, neste momento, torço muito para que ele exista e me permita, uma vez mais, estar perto da minha querida.

PS: Gostaria de ser enterrado aqui mesmo, perto do mar."

- Bem, é isso - disse Pedro ao terminar de ler.

Pedrinho tinha a voz embargada, não pôde dizer nada. Os dois se levantaram do sofá vermelho onde o avô costumava receber os amigos, olharam mais uma vez as fotografias e a casa que os cercavam e saíram. No carro, de volta para o Rio, Pedrinho perguntou:

- Pai, você vai trazer os livros para nossa casa?

- Claro que não. Já falei com um livreiro, ele cuidará de tudo.

- Mas pai...

- Já falamos sobre isso, Pedrinho - disse em tom taxativo.

Após um breve silêncio, o pai completou:

- É um livreiro virtual.

* * *

Alguns dias depois, a caminhonete de uma empresa de transportes pára em frente ao apartamento. Pedrinho atende o interfone radiante:

- Pode subir!

O pai, curioso, pergunta do que se trata.

- Chegaram meus livros - responde o filho.

- Livros?

- Comprei com a poupança deixada pelo vovô.

- De onde são? - indaga Pedro.

- De um livreiro virtual - sorri Pedrinho.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Homem apontando


Escultura de Alberto Giacometti

De onde vens? Para onde vais?
Gosto de pensar nele como o senhor do espaço-tempo.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Teoria do valor para leigos

Para responder por que a desigualdade e a exploração são inerentes ao capitalismo, resolvi esboçar de forma simplificada a teoria do valor de Marx, a única teoria capaz de descrever de forma coerente os mecanismos internos de funcionamento desse sistema.

"A riqueza das sociedades em que domina o modo de produção capitalista aparece como uma imensa coleção de mercadorias." As mercadorias, para serem produzidas e trocadas, necessitam possuir um valor de uso, ou seja, propriedades que atendam às necessidades biológicas ou espirituais do ser humano. Mas o termo mercadoria só faz sentido se pensarmos que esse ser é trocado em algum mercado. Para que exista o intercâmbio de mercadorias, é preciso que, além de ser útil em alguma medida, a mercadoria possua um valor de troca. Enquanto o valor de uso é uma propriedade qualitativa, o valor de troca é uma relação quantitativa, ou seja, a proporção em que os valores de uso de diferentes espécies se trocam. Os dois momentos da mercadoria formam uma unidade dialética interna. Quando prepondera o valor de uso, não pode ser valor de troca e vice-versa. Mas o que faz diferentes mercadorias serem trocadas, a despeito de suas diferenças físicas, de quantidade e de uso? Qual a unidade de comparação que diz que um par de sapatos equivale a um casaco? A substância que está contida em toda mercadoria, que se iguala às demais no momento da troca, é o valor. Na essência da mercadoria, no plano de análise mais abstrato, a unidade dialética é dada pela contradição entre valor e valor de uso.

Mas o que é o valor? Se todas as mercadorias são fruto do trabalho humano (tente pensar em uma que não seja), a única substância capaz de igualá-las no momento da troca é o valor enquanto quantidade de trabalho abstrato, indiferenciado, contido na mercadoria. Aí surgem mais duas categorias: trabalho abstrato e trabalho concreto. O segundo é o trabalho enquanto propriedade específica de criar objetos específicos, por exemplo, uma mesa. O primeiro é o trabalho como quantidade de dispêndio de energia humana (seja ela qual for) na construção de um objeto qualquer. A mesa é trabalho específico do marceneiro, mas ao mesmo tempo é trabalho abstrato do trabalhor humano em geral. O valor de cada mercadoria é dado pelo tempo de trabalho socialmente necessário para fabricá-la, ou seja, a média de tempo em que uma sociedade com dado padrão tecnológico produz um objeto para troca.

Para construir uma mesa, o marceneiro precisa de ferramentas. As ferramentas não se esgotam a cada vez que uma mesa é feita. Elas são produzidas em um tempo anterior e, como mercadorias, também são dotadas de valor. Ao fabricar a mesa, o marceneiro, portanto, emprega trabalho vivo, o seu próprio esforço, e trabalho morto, aquele contido nas ferramentas e que já foi criado no passado. O valor final da mesa é a soma do trabalho novo (vivo) criado no processo de trabalho com o trabalho passado (morto) que foi transferido pelo desgaste das ferramentas utilizadas.

Agora pensem numa grande indústria capitalista e toda sua potência geradora de mercadorias. Ou mesmo numa pequena fábrica cujo dono contrate alguns funcionários para trabalhar para ele. O proprietário do negócio contrata força de trabalho e compra as máquinas e matérias-primas para que sejam produzidas mercadorias. Isso faz dele o capitalista. O trabalhador vende sua força de trabalho e utiliza o trabalho morto contido nas máquinas e ferramentas para, com seu trabalho vivo, criar valor novo e, como produto final, apresentar uma mercadoria que contenha mais valor do que a soma original de valor das máquinas e matérias-primas, antes de ingressarem no processo de trabalho. Portanto, o valor de uma mercadoria é dado pela parte constante (trabalho morto, oriundo do desgaste das máquinas e matérias-primas que foi transferido para o produto final) e pela parte variável (aquela que foi acrescida pelo trabalho humano desempenhado no processo de produção).

A peculiaridade do modo de produção capitalista é que a força de trabalho também foi transformada em mercadoria. Como tal, tem um valor de uso: criar novas mercadorias; e um valor: o tempo de trabalho socialmente necessário para que ele exista. Mas qual é o tempo de trabalho socialmente necessário da mercadoria força de trabalho? É o conjunto de meios de subsistência necessários para a sua existência e reprodução social. Assumindo que todas as mercadorias são trocadas pelo seu valor exato (ou seja, não se vende uma mercadoria abaixo do seu valor), o valor da força de trabalho é representado pelo salário que o patrão paga ao trabalhador. Mas aí está o busílis. A mercadoria força de trabalho possui uma propriedade especial e exclusiva, que é a de criar valor novo. A quantidade de valor novo criada pela força de trabalho em operação independe do valor próprio da força de trabalho. Por isso, o capitalista paga ao trabalhador o valor de sua força de trabalho (o socialmente necessário à sua reprodução) e se apropria do valor novo por ela criado no processo produtivo. A questão é que o valor novo criado e consubstanciado na mercadoria é superior ao valor próprio da força de trabalho, aquele necessário para sua reprodução. Dito novamente, o capitalista paga o valor da força de trabalho, mas se apropria do valor por ela criado. Depois do processo de trabalho, portanto, a mercadoria final será trocada pela soma de valor transferido (das máquinas e matérias-primas ao produto final por meio do seu consumo produtivo) mais o valor novo criado (pela força de trabalho, que é remunerada através do salário). Mas vimos que o valor novo criado pelo trabalhador é superior ao valor da força de trabalho. Logo, parte do valor criado repõe o custo da força de trabalho (paga pelo capitalista em forma de salário), mas outra parte excede esse valor, sobra. Essa parte excedente é chamada de mais-valia.

A mercadoria final será trocada por outras mercadorias pelo valor total contido nela. Qual é esse valor? A soma de valor transferido (máquinas e matérias-primas) + parte do valor novo (que repõe o valor da força de trabalho na forma salário) + a outra parte do valor novo (excedente sobre o valor da força de trabalho), que é a mais-valia, fruto do trabalho que excede o necessário para a simples manutenção da força de trabalho e que não é pago ao trabalhador, mas apropriado pelo capitalista. É com essa diferença, a mais-valia, que o capitalista pode acumular riqueza, investir na produção e contratar mais força de trabalho para obter mais mais-valia. E assim sucessivamente.

É claro que a descrição acima é extremamente sumarizada e não leva em conta a infinidade de fatores que se interpõem entre o processo abstrato e o processo real concreto. Além disso, a complexificação das relações de trabalho gera uma série de novas mediações que só podem ser incorporadas mediante a análise concreta desses processos. De qualquer forma, pode-se ver que, em sua essência, o modo de produção capitalista gera riqueza abundante tendo como base exploração do trabalhador e apropriação de trabalho não pago.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Ironias da História


Potosí, situada a quase 4.000 metros de altitude, foi durante muito tempo a jóia da coroa espanhola. Inventada pelos colonizadores quando da descoberta de prata na região, tornou-se a cidade mais rica do mundo no século XVII. A argentum sacra fames gerou um surto demográfico que colocou a cidade entre as mais populosas do planeta, equiparável à Paris e Londres da época. O Cerro Rico, que fica dentro da cidade, é a montanha de onde tiraram a maior parte da prata que embarcou para a Europa durante o domínio espanhol. Pela importância da extração de metais preciosos, Potosí foi como Ouro Preto para o Brasil, mas em proporções muito maiores no caso boliviano. No período colonial, a cidade foi dividida em duas partes, separadas por um portal: o lado espanhol e o lado indígena. Na parte européia, onde viviam os fidalgos e administradores públicos, as ruas são retas e os edifícios têm grandes portadas, pois foram inspirados na arquitetura andaluza e lá o clima é bastante árido. A parte inca (foto), onde fica o Cerro Rico, foi e continua sendo habitada pelos indígenas trabalhadores das minas e tem ruas sinuosas e irregulares, adaptadas para bloquear o vento frio típico do altiplano boliviano. Entre as construções mais importantes da cidade está a Casa de la Moneda, onde eram cunhadas as moedas com o selo real. Tanta prata foi tirada das entranhas do Cerro Rico que, por dentro, ele se assemelha a um queijo suíço, cheio de caminhos e minas onde já morreram e continuam morrendo milhares de descendentes de incas. Geólogos acreditam que, caso a atividade mineradora continue, o Cerro pode desabar por falta de sustentação interna. Não obstante, a prata continua sendo um dos principais produtos na pauta de exportação da Bolívia e ainda é responsável por movimentar a economia e os habitantes da cidade histórica. Conta-se que, no período áureo (ou melhor, argênteo), as moedas cunhadas em Potosí tinham circulação em toda a Europa e até mesmo no Japão.

Hoje, a Bolívia é o país mais pobre da América do Sul e a moeda nacional, o Peso Boliviano, por falta de tecnologia, é confeccionada no Canadá.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

O fim e o princípio


“- ¿ Y hasta cuándo cree usted que podemos seguir
en este ir y venir del carajo? – le preguntó.
Florentino Ariza tenía la respuesta preparada
desde hacía cincuenta y tres años,
siete meses y once días con sus noches.
- Toda la vida – dijo."

Gabriel García Marquez, El amor en los tiempos del cólera


Não sei dizer por que estou aqui. Não falo apenas sobre estar às 4:47 da manhã escrevendo no meu laptop um texto a ser publicado em um blog igual a tantos outros, que não merece mais atenção do que a que eu mesmo já dedico quando, por necessidade de moer algumas coisas internamente, decido-me por moê-las em público, ainda que privadamente. Na verdade, não sei se há sentido em tudo o que fazemos. Acho mesmo que não. Esquizofrenia de formigas? Talvez, mas isso não elimina o certo e o errado, ou melhor, a verdade, e essa é a grande questão filosófica. Talvez por predileção, talvez não, acho que todos temos uma função social a desempenhar diante da existencia, quer a cumpramos ou não. Não posso dizer definitivamente qual é a minha função social, mas já sei dizer quais não são. O fato é que temos vida e alguma consciência e isso já nos permite fazer muita coisa, como decidir qual é a cena mais bonita de nossa existência. E, diante dos meus 24 anos de vida, elejo como o momento mais belo um fim de tarde na praia na qual pude ler no tempo e no espaço o momento exato em que uma garota encerrou a leitura de um livro. Não precisaria dizer que não era uma garota qualquer, nem uma tarde qualquer, tampouco um livro qualquer. Toda a natureza estava concentrada em um ponto do cosmos que eu tive a sorte de perceber não mais que por acaso. O sinal foi um leve fechar e abrir de pálpebras, quase imperceptível e tão harmônico quanto a suave brisa que nos tocava a pele naquele instante. O livro se fechou e um suspiro indescritível aflorou de seu rosto, de seu corpo jovem e belo. O sol foi mais claro, o tempo mais devagar e o todo o som do ambiente estava supenso. Vi a própria vida diante de mim, uma pequena amostra da eternidade. Foi um segundo apenas, mas foi o instante mais puro, verdadeiro e repleto de sentido que pude depreender da existência. É o que ficará imortalizado em minha memória, conservado de tudo, para sempre.

Mas como saber exatamente o ponto em que uma história chega ao fim? Na vida, ao contrário de alguns filmes e livros, não existe uma legenda que marca inconfundivelmente o término de um episódio. Não existe um "FIM", como nas telenovelas ou nos romances de Agatha Christie. Da mesma forma, também não existe um "COMEÇO". Imaginem como seria engraçado um filme que iniciasse, logo depois dos créditos de abertura, com uma legenda como essa. De qualquer forma, não é difícil perceber que, mesmo sem legendas, a vida real está repleta de fins. Creio, contudo, não ser bobagem dizer que precisamos ser espertos para notar o quanto antes que, logo depois de um FIM, sempre vem um (RE)COMEÇO.

domingo, 4 de outubro de 2009

"Como perdi um amor ao som de Mercedes Sosa"

É engraçado como uma relação a dois pode ser vulnerável. Um amigo me contou que, depois de meses de desamor com a namorada, conformou-se com o término do relacionamento ao ouvir uma música de Mercedes Sosa. Na verdade, foi a moça que, alguns dias depois, tomou a decisão de romper o compromisso, mas ele, que estava inseguro e relutante até então, compreendeu que depois daquele vinil não havia outro fim possível para os dois. O rapaz disse acreditar que se não tivesse escolhido aquele disco para tocar naquela tarde nublada de sábado, os dois certamente teriam continuado juntos por mais tempo, mas o fato é que ambos sentiram-se tão melancólicos e sozinhos ao fim do LP que tudo pareceu irremediavelmente resolvido, como se a verdade da música os tivesse feito encarar com sinceridade o fim daquele amor. Lembro que na ocasião pensei em escrever um conto sobre o assunto, chamado "Como perdi um amor ao som de Mercedes Sosa". Nunca consegui materializar a história em palavras, mas o título que escolhi me deixa feliz e é dele que sempre me lembro quando penso nela. Adiós, Mercedes.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

27 de outubro de 2002

Lembro como se fosse hoje. Era ano de vestibular e eu estava sentado na mesa da sala de jantar da minha casa com dois amigos, Caio e Gabriel. Estudávamos física para a prova que se aproximava. O barulho da TV ligada no quarto dos meus pais vazava para a sala, mas não incomodava. Estávamos todos apreensivos esperando o resultado que seria anunciado a qualquer momento. Por descuido, alguém saiu do quarto e deixou a porta bem aberta. Nesse instante, a vinheta inconfundível do Domingão do Faustão anunciou o início de mais um fim de tarde de domingo. Mas aquele não era um domingo qualquer. Por ironia do destino, o apresentador do mais coagido dos vídeos, Fausto Silva, símbolo supremo da nulidade cósmica, com uma indisfarçável efusividade programada, abriu o programa com a seguinte frase: "27 de outubro de 2002, Luis Inácio Lula da Silva é o novo presidente do Brasil".

A noite foi de festa. Eu não deixava de pensar que debutávamos na vida adulta com o episódio mais esperado desde a redemocratização: a eleição do presidente operário. Tínhamos 17 anos e a história se mostrava promissora diante de nossas férteis e imaturas mentes esperançosas. No meu primeiro voto, elegi um presidente popular, retirante, mestiço, sem dedo. Fomos à Avenida 13 de Maio comemorar com outros milhares de eleitores a vitória da esperança. Depois de algumas horas de euforia cantando o hino nacional, abraçando desconhecidos e vendo a alegria genuína no rosto das pessoas, como numa terça-feira de carnaval, as serpentinas no chão sinalizavam que a folia estava terminando. Aos poucos, a multidão se dispersava e nós, cansados de felicidade, pensávamos em voltar para casa. Estávamos os três de pé no meio da avenida ,já quase vazia, quando Caio disse: "Acho que está acabando". Após um curto silêncio que só fez o momento ainda mais solene, Gabriel respondeu: "Está apenas começando".