quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Prateleiras vazias

O silêncio da casa o fez acordar. Não precisou de muito tempo para se sentir completamente desperto e levantar do sofá-cama. O frio na barriga bem poderia se confundir com a fome, não fosse pelo fato de que ele nunca sentia fome pela manhã. A ansiedade confirmava a certeza sobre aquilo que encontraria, ou melhor, que não encontraria. Foi até a cozinha, pegou um copo de vidro e abriu a geladeira. Não havia nada nas prateleiras além de uma caixa de leite e uma panela com restos de macarrão instantâneo. O copo ficou vazio sobre a pia da cozinha.

* * *

Duas semanas antes, a campainha tocara inesperadamente. Quando ele abriu a porta, lá estava ela com duas malas debaixo dos braços. Disse que precisava de um lugar para ficar durante alguns dias, enquanto esperava a resposta de um emprego na cidade. Ela era atriz, estava ali para fazer uns testes. Assim que a viu, não pôde evitar o pensamento de que ela talvez estivesse voltando para ficar. Já havia quase dois anos que estavam separados, mas os móveis da sala continuavam na mesma posição em que ela os deixara.

No começo, nenhum dos dois podia disfarçar completamente o constrangimento. As pausas eram muito mais longas que as conversas. Ele saia para trabalhar todos os dias e passava as horas se perguntando se quando voltasse para casa ela ainda estaria lá. Ela se encarregava do jantar, mas não cozinhava bem. Ele sempre elogiava os pratos que ela preparava, mas queria mesmo era elogiar seus olhos. Num fim de semana, foram à praia. Noutro dia, se encontraram no museu depois que ele saiu do trabalho. Com pouco tempo, passaram a agir naturalmente, mas uma leve ansiedade pairava no ar sempre que se diziam boa noite. Ele cedera o quarto para ela e estava dormindo na sala. Ela protestou, disse que não queria incomodar, mas ele insistiu e se instalou no sofá-cama.

Certo dia, sem querer, ele a encontrou na cozinha de costas, com o vestido levantado até a cintura, aplicando uma dose de insulina na perna. Ficou olhando sem fazer barulho e pensou em quantas vezes já vira aquela cena anteriormente. Sempre dissera que trocaria de lugar com ela, se pudesse, ao que a ouvia responder que Deus dava o castigo conforme o crime. Ela era diabética e, caso não fizesse as quatro aplicações diárias de insulina em horários controlados, sofreria crises de hipoglicemia que poderiam levá-la ao coma ou até à morte. Para onde quer que fosse, ela levava um estojo com as injeções e o deixava na geladeira, pois o medicamento precisava ser mantido em temperatura adequada.

Um dia ele chegou em casa e a mesa não estava posta. Ela saiu do banho com um sorriso no rosto e disse que naquela noite jantariam fora, para comemorar a notícia de que fora escolhida para um papel. Foram a um restaurante em que haviam jantado quando ainda eram namorados, tempos atrás, mas nem ele nem ela se lembraram disso. Conversaram muito, como se estivessem saindo juntos pela primeira vez. Chegaram em casa, disseram boa noite e ela foi para o quarto. Antes que o sono viesse, ele sentiu a mão dela sobre o ombro. Passaram a noite no sofá-cama e ele adormeceu sentindo-se quase dois anos mais jovem.

Quando acordou na manhã seguinte, o estojo de insulina não estava mais na geladeira. Nas prateleiras, nada além de uma caixa de leite e uma panela com restos de macarrão instantâneo.


terça-feira, 9 de fevereiro de 2010


Vou-me embora pra Quixaba
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Fevereiro

Como a gota que transborda o copo
e não se pode evitar

O suspiro que desata o choro
derramando para aliviar

O calor que rebenta em chuva
na máxima saturação do ar

Fevereiro deságua
sem poder mais aguardar

Com o fim anunciado
e de curta duração
se consome em desespero
euforia e redenção
é tensão que alivia
sem resposta ou solução

Por ser tão esperado
passa logo, vai embora
é impulso represado
derrama-se e evapora
na cidade inteira, deságua
mas no meu coração, demora

E aos que choram sua morte
esgotados em plena graça
Fevereiro dissimula
lança cinzas sobre a praça
veste outra fantasia
e de março se disfarça

Pois é mesmo como o tempo
passa, mas não termina
semeia o próximo deságüe
com a última serpentina
escorre por entre as ruas
morre, porém germina




(Inspirado em Verão, de F. Gullar; Cores, de R. Bacelar;
e em todas elas que vejo passar)