quinta-feira, 20 de agosto de 2009

A marcha

Cecília Meireles

As ordens da madrugada romperam por sobre os montes:
nosso caminho se alarga sem campos verdes nem fontes.
Apenas o sol redondo e alguma esmola do vento
quebraram as formas do sono com a idéia do movimento.
Vamos a passo e de longe; entre nós dois anda o mundo,
com alguns vivos pela tona, com alguns mortos pelo fundo.
As aves trazem mentiras de países sem sofrimento.
Por mais que alargue as pupilas, mais minha dúvida aumento.
Também não pretendo nada senão ir andando à toa,
como um número que se arma e em seguida se esboroa,
- e cair no mesmo poço de inércia e de esquecimento,
onde o fim do tempo soma pedras, águas, pensamento.
Gosto da minha palavra pelo sabor que lhe deste:
mesmo quando é linda, amarga como qualquer fruto agreste.
Mesmo assim amarga é tudo que tenho entre o sol e o vento:
meu vestido, minha música, meu sonho e meu alimento.
Quando penso no teu rosto, fecho os olhos de saudades;
tenho visto muita coisa, menos a felicidade.
Soltam-se os meus dedos tristes, dos sonhos claros que invento.
Nem aquilo que imagino já me dá contentamento.
Como tudo sempre acaba, oxalá seja bem cedo!
A esperança que falava tem lábios brancos de medo.
O horizonte corta a vida isento de tudo, isento...
Não há lágrima nem grito: apenas consentimento

Música sencilla

Alguns artistas nos tocam de um jeito podem resolver nossas aflições com apenas uma pincelada, um verso, um tom. Para mim, a mágica está no fato de que essas pessoas preenchem nossa necessidade de ser vazio e só assim, vazios, conseguimos sentir toda a potência da sua arte. Talvez o mais difícil não seja encher, mas esvaziar previamente.

Devo dizer que tenho entre meus amigos um que me faz chorar sem estar triste. Ele canta belamente e, não fosse por saber que temos muito em comum, diria que sua música é meu pensamento cantado. Ele canta a sua própria vida e nos faz sentir mais de perto as nossas. Não conheço nada do assunto, mas sei que ele faz muito mais que acordes e versos, ele conta histórias cantadas que nunca são banais e com as quais sempre se surpreende e se comove. Canta nada mais que os livros que leu, os versos que escreveu e as histórias que viveu, mas canta tudo de um jeito tão sereno e sincero que me convence que suas histórias são, em parte, minhas. Queria eu saber fazer música para ao menos almejar compor com tanta sensibilidade. Sinto-me verdadeiramente orgulhoso de ouvir o que ele canta.

Música sensível, sincera, simples.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Grito hacia Roma


Duas semanas acordando sob o sol norte-americano de Nova York. Duas semanas transpirando nas ruas da Meca do consumo, na Roma moderna. Duas semanas respirando o medo que habita o inconsciente da cidade após o atentado de 2001. Duas semanas tentando entender o nosso próprio mundo, exagerado nas colunas de mármore dos templos imperiais do capitalismo. Difícil traduzir uma multitude de estímulos em uma única e precisa impressão. O que ficou de mais forte depois desses 15 dias é a sensação de derrota. Como disse Belchior e bem lembrou Rafael, "eles venceram e o sinal está fechado para nós que somos jovens". Jovens, pobres e subdesenvolvidos.

Do alto do Chrysler Building bradou Lorca sua midéria pessoal e nossa miséria comum. Do alto da cidade pude ver como todos os prédios e escritórios e luzes e força estão repletos de ausência, como o quadrado negro de Malevich. E entre os prédios de escritórios estão os museus, as bibliotecas públicas, as universidades, os bancos, todos erigidos sobre sólidas colunas de mármore indefectíveis. Como derrubar sequer uma dessas pilastras? Como vencer uma nação e ideais tão poderosos como os deles? Cada nave de igreja, cada corredor iluminado de museu, cada banheiro de universidade, cada maciça e pesada porta de madeira me derrotava como cada um de nossos países e ideais mais justos sucumbiram diante da força do império. Não temos força para vencê-los, por isso não poderemos vencê-los pela força.

E entre as colunas correm rios de pessoas que correm sempre com pressa, sempre comendo sem cerimônia, sempre com seus artefatos eletrônicos de última geração, conectados com o mundo e com ninguém. Há sempre uma loja virando a esquina, sempre algo para preencher o vazio cósmico de toda a existência que parece não refletir sobre si mesma. Soluções individuais, sempre. Almas penadas vagando sem se esbarrarem, sem se encontrarem, sem se verem e nem se falarem. E tudo funciona perfeitamente como tem que funcionar para o mundo funcionar como funciona. A bolsa de valores, a bandeira listrada, o World Trade Center e o trem que nos leva pontualmente até o aeroporto. Senti que aquilo é o capitalismo de verdade, subjugando a tudo e a todos ao seu ritmo incessante, impessoal, competitivo. A cidade é feita para funcionar no ritmo do capital. Mas a cidade é feita por pessoas e é bonita como são bonitas as pessoas. Seus parques, seus arranha-céus e suas luzes dão a dimensão do que o homem pode realizar. É possível ver em toda obra a natureza humana e, se se quer, admirá-la.

Algumas vezes senti orgulho de ser subdesenvolvido. Não ufanismo, mas a sensação de que ao menos a responsabilidade por inventar e liderar esse mundo não é nossa. Isso não nos exime das demais responsabilidades, pelo contrário, mas me faz sentir algum conforto ao voltar para casa. Se, como disse Marx, os países desenvolvidos não fazem senão mostrar aos países atrasados o espelho do seu futuro, sinto desde já uma nostalgia do que poderia ter sido e, se reconheço a derrota, o faço sem deixar de pensar que um outro mundo, além de possível, é necessário.