quinta-feira, 20 de agosto de 2009

A marcha

Cecília Meireles

As ordens da madrugada romperam por sobre os montes:
nosso caminho se alarga sem campos verdes nem fontes.
Apenas o sol redondo e alguma esmola do vento
quebraram as formas do sono com a idéia do movimento.
Vamos a passo e de longe; entre nós dois anda o mundo,
com alguns vivos pela tona, com alguns mortos pelo fundo.
As aves trazem mentiras de países sem sofrimento.
Por mais que alargue as pupilas, mais minha dúvida aumento.
Também não pretendo nada senão ir andando à toa,
como um número que se arma e em seguida se esboroa,
- e cair no mesmo poço de inércia e de esquecimento,
onde o fim do tempo soma pedras, águas, pensamento.
Gosto da minha palavra pelo sabor que lhe deste:
mesmo quando é linda, amarga como qualquer fruto agreste.
Mesmo assim amarga é tudo que tenho entre o sol e o vento:
meu vestido, minha música, meu sonho e meu alimento.
Quando penso no teu rosto, fecho os olhos de saudades;
tenho visto muita coisa, menos a felicidade.
Soltam-se os meus dedos tristes, dos sonhos claros que invento.
Nem aquilo que imagino já me dá contentamento.
Como tudo sempre acaba, oxalá seja bem cedo!
A esperança que falava tem lábios brancos de medo.
O horizonte corta a vida isento de tudo, isento...
Não há lágrima nem grito: apenas consentimento

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