quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Memórias de La Paz

Este palacio es fábrica de los dioses, pensé primeramente. Exploré los inhabitados recintos y corregí: Los dioses que lo edificaron han muerto. Noté sus peculiaridades y dije: Los dioses que lo edificaron estaban locos.
Jorge Luis Borges, El inmortal

La Paz não poderia existir. Alguém sonhou e ela se fez. Escolheram um buraco, un hueco cavado no Altiplano, para erigir esse monumento índio. É como um tacho com paredes internas cor de tijolo e fundo de asfalto. Todas as encostas que circundam a cidade são densamente povoadas por casas e pequenos edifícios sem revestimento por fora, colorindo monocromaticamente a cidade de marrom-claro. De qualquer ponto do centro é possível ver as encostas ingrimes que circundam a cidade.

Chega-se em La Paz por El Alto, a área metropolitana que fica do lado de fora do tacho, no Altiplano propriamente. É onde vive a população mais pobre. Vindo de Santa Cruz, cruzando a madrugada, acorda-se com o Illimani na janela direita do ônibus. O Illimani, que em quéchua significa águia maior, é um monte nevado que parece ter sido colocado no horizonte da cidade apenas para confirmar que o lugar é inexplicável. Não bastasse estarmos na capital mais alta do mundo, a 3600 metros acima do nivel do mar, a montanha, com mais de 5000 metros de altitude, parece ser uma das colunas a sustentar o céu.

Descendo as encostas em direção ao centro, chega-se a uma legitima capital nacional. As chollas e suas enormes bolsas coloridas não deixam esquecer a história da colonização. O peso das sacolas, que por vezes vira mochila para carregar os filhos pequenos, faz essas mulheres andarem curvadas e com passinhos sempre apressados. Estão em outro universo de significação. Conosco, falam somente o essencial.

Explorando suas ruas, deparei-me com um grande fluxo de pessoas saindo de um beco na Avenida 16 de Julio. Um mar de idosos transbordava de uma pequena escada ao fundo de uma galeria. Intrigado, entrei no meio da multidão e descobri que se tratava de uma reunião de jubilados (aposentados) de La Paz para reivindicar melhores benefícios. A idade avançada era usada pelos patrões como motivo para afastá-los do trabalho regular. Recebendo menos do que ganhavam quando empregados, muitos prefeririam continuar trabalhando pelo antigo salário.

Na Plaza Pedro D. Murillo estão os prédios do Legislativo e o Palácio Presidencial, lado a lado. Vi crianças, adultos, idosos, cachorros e pombos, todos passeando naquele fim de tarde às portas de Evo, esse índio descido num ponto quase equidistante entre o Atlântico e o Pacífico. La paz invadiu o meu coração. Foi melancólico deixá-la para trás, principalmente por saber que eu ainda não a havia entendido completamente.