sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Um Tuareg

Nova York, agosto de 2009. Eu e Rafael acabávamos de enfrentar mais um dia de extenuante calor pelas ruas da cidade e já nos preparávamos para enfrentar outra noite de verão igualmente quente. Entre chegar ao albergue, tomar banho e sair novamente, sempre escolhíamos como jantar alguma iguaria callejera, eleita de acordo com a disposição dos nossos estômagos. Pizza place e falafel eram as pedidas de quase todas as horas. Andando pelo quarteirão em busca de um lugar para comer, descobrimos uma lojinha de lanches árabes e fizemos a aposta certa. Durante os poucos dias que nos restavam de viagem, pode-se dizer que freqüentamos assiduamente o lugar. A comida era boa e honesta, mas para falar a verdade, nada muito diferente do que podia ser encontrado numa barraquinha genérica de falafel, das milhares espalhadas por Nova York. Nossa fidelidade à lanchonete se devia principalmente ao senhor que nos atendeu desde a primeira vez que fomos lá. Passando dos 50 anos de idade, pele morena, jeito manso de falar e um bigode discreto, porém marcante: o Jorge Ben das Arábias, como bem apelidado pelo Rafael. “Chicken kebab or lamb kebab?” era pergunta mágica que fazia, como se estivesse disposto a nos permitir uma olhadela numa das preciosas jóias de seu tesouro milenar. Puxamos assunto e perguntamos de onde ele vinha. “Egypt”, respondeu alegremente. Continuamos conversando um pouco mais até que ele olhou bem para mim, como se reconhecesse algo familiar na minha expressão, e disse: - Do you speak arabic?

Na hora, não pude entender porque fiquei tão feliz com a pergunta. A verdade é que me senti lisonjeado. Estava sendo confundido com um árabe! Senti aflorar em mim uma grande satisfação, satisfação por não ser prontamente reconhecido, por não me denunciar, por poder passar despercebido. Algumas pessoas já tinham dito que tenho um quê de árabe, mas ser confundido com um árabe por um próprio árabe, isso é outra coisa...

No dia seguinte, ao sair do albergue pela manhã, no início de mais uma de nossas andanças pela cidade, passamos por acaso em frente à lanchonete. Lá estava o Jorge Ben trabalhando. Não é possível que ele trabalhe desde essa hora da manhã até de noite, pensamos. Ao voltarmos para o jantar, quando já havia escurecido, confirmamos a suspeita. Nosso Tuareg estava lá, demonstrando a mesma disposição para atender todos os que entrassem na loja. Então entendi realmente porque fiquei tão feliz com sua pergunta da noite anterior. Percebi que, naquele instante, o que aflorou em mim foi um sentimento de gratidão por ter sido momentâneamente incluido entre os seus, entre os povos que são submetidos à exploração e precisam migrar em busca de emprego e dignidade, não entre os que exploram. Foi tão bom quanto ser confundido com um boliviano, um argentino, um paraguaio... É um sentimento bobo, talvez, mas verdadeiro. Fez-me crer que resistir é um dever. Senti-me parte da verdade que existe em todas as cidades do mundo. Cairo, La Paz, Assunção, Caracas, Havana, Buenos Aires, Luanda, Argel, Bissau, Maputo, Porto Príncipe. Fui comovido pela verdade do mundo.

3 comentários:

Unknown disse...

Protesto! A alcunha com que designamos o simpático coroa era "Jorge Ben da Babylônia"! Puro Taj Majal de lamb kebab...

Unknown disse...

Protesto II! Salvo se a (cada vez mais) traiçoeira memória estiver me enganando, não entendeste de primeira a pergunta do Jorge Ben porque ela foi preferida em um idioma que ainda não dominas: o árabe. "Você fala árabe?", ele perguntou em árabe e, em seguida, em inglês.

Rômulo disse...

Proteto 1 aceito. Salve Jorge Ben da Babylônia! Já o protesto 2 não posso confirmar, porque a verdade é que entendi perfeitamente o que ele perguntou logo na primeira vez. Se foi em árabe ou em inglês, não sei dizer...