sábado, 7 de novembro de 2009

As intermitências da mídia


Quando a luz faltar, encontrarás o silêncio que tinhas perdido

Livro das profecias

Parte I

Acordou antes do despertador. A claridade cinza da manhã entrava pela fresta da cortina e o impediu de voltar a dormir. Virou e revirou na cama, mas se sentia por demais acordado para retornar ao sonho bom que ficou pela metade. A casa em silêncio, caminhou até a cozinha, abriu a geladeira e tomou um copo de leite. Foi até a a porta do apartamento buscar o jornal, mas o capacho estava vazio. Olhou para a porta do vizinho e viu que ali também não havia jornal. Entranho, pensou. O jornal sempre chegava antes que acordasse. Deve ser porque é domingo. Voltou para o quarto e viu que a mulher continuava deitada, em sono profundo. Retornou para a sala e se sentou na poltrona, de frente para a televisão. Pensou que talvez ainda estivesse passando o telejornal da manhã. Ligou o aparelho, mas nada apareceu. Ou melhor, apareceu a típica imagem confusa, em preto e branco, de quando nada é sintonizado. Lembrou que seu pai chamava aquilo de "guerra de mosquitos", os brancos contra os pretos e seus zunidos infernais. Diminuiu o som do aparelho e começou a passar pelos canais. Nenhum deles aparecia. Desligou e ligou novamente a televisão, mas a situação continuou a mesma. Esgueirou-se atrás do móvel para conferir a fiação e viu que todos os cabos coloridos que saiam da parede e dos outros equipamentos estavam corretamente conectados nas entradas de mesma cor da parte de trás do aparelho. Sentou-se novamente na poltrona e repetiu todo o processo: ligou, desligou, ligou de novo, passou por todos os canais, conferiu os fios. Nada. Irritado, pensou em telefonar para a empresa de canais por assinatura e registrar uma queixa, mas desistiu ao imaginar os vários atendentes com quem teria que falar e explicar a situação, sem garantia de que resolvessem o problema. Daqui a pouco volta a funcionar, disse consigo mesmo. Lembrou do rádio. Há muito tempo não ligava o som da sala para ouvir as notícias. Ligou o aparelho. Mexeu no botão giratório que buscava as estações e nenhuma emissora era localizada. Percebeu que o botão do volume apontava para o nível mínimo, mas mesmo ao girar para a posição intermediária e depois para a de nível máximo nenhum ruído saiu pelos amplificadores. Tirou da tomada e ligou novamente. Nada, apenas o som de som algum.

Respirou fundo e deitou-se no sofá. A antena está quebrada, só pode ser. Foi até o intercomunicador, mas não conseguiu fazê-lo funcionar. Calçou os chinelos e desceu as escadas até a portaria, de pijama mesmo. Perguntou para o porteiro e ouviu que não sabia o que estava acontecendo. Nem as câmeras de vigilância do prédio estão funcionando. Outros moradores já haviam descido para procurar o jornal e reclamar do sinal de TV. Sem poder fazer nada, tomou o caminho de casa. Pelo menos este funciona, pensou de dentro do elevador. Entrou em casa e caiu no sofá. Esperou mais de uma hora sem fazer nada até que a mulher acordasse. Tomaram café enquanto ele relatava o ocorrido. A esposa tentou minimizar o problema, dizendo que seria bom ficar um tempo sem TV. Diante da impaciência silenciosa do marido, ela sugeriu que ligasse para a empresa de canais por assinatura. Ele achou que não havia outro jeito. Foi até o telefone, mas o aparelho não dava sinal de linha. Pegou o celular e a única voz que respondeu foi a da gravação que disse não ser possível completar a chamada. Depois de tentar outras tantas vezes fazer uma ligação qualquer, largou o aparelho no canto e voltou para a mesa, inconformado.

Terminaram o desjejum e sentaram no sofá. Ficaram alguns minutos em silêncio até que ela puxou assunto. Falaram um pouco sobre o filme que haviam assistido na véspera, mas logo se calaram. Mais alguns minutos e ela se levantou para lavar a louça do café. Ele voltou para o quarto e deitou novamente na cama. Por volta do meio dia, saíram para almoçar. Foram de carro até um restaurante que sempre frequentavam nos fins de semana. Foram atendidos pelo garçom de sempre, que lhes trouxe as cartas com comidas e bebidas. No fundo do restaurante, havia uma televisão ligada, mas a tela estava toda azul e nenhum som era ouvido. Ele perguntou ao garçom se não era possível sintonizar um canal qualquer, para ouvir as notícias da hora do almoço. Não está funcionando, respondeu o garçom, nenhuma aqui está funcionando. Intrigado com a situação, tentou novamente o celular. O problema persistia. Perguntou ao garçom se seu celular estava funcionando normalmente. O garçom, que ainda não havia tentado fazer nenhuma ligação naquele dia, fez o teste. Não está ligando, constatou. Estranho, disse ao mesmo tempo o casal. Terminaram de almoçar especulando sobre as causas da inusitada situação. Ao voltar para o apartamento, perguntaram ao porteiro se o sinal da televisão havia voltado a funcionar. O porteiro respondeu que não. Bateram à porta do vizinho e constataram que lá também estavam sem TV, sem rádio, sem jornal, internet ou telefone. Passaram o resto do dia no apartamento. Na sala, durante a maior parte do tempo, leram revistas velhas e folhearam os jornais de ontem. Depois do jantar, ela escolheu um disco e abriu uma garrafa de vinho. Lembraram que o último vinho que beberam juntos, sozinhos, foi durante a viagem em que comemoraram as bodas de 10 anos. Falaram daquela viagem e foram lembrando de outras mais antigas, em ordem cronológica inversa, até a primeira viagem que fizeram juntos, a Ilha Grande. Recontaram as histórias de anos atrás e disputaram sobre quem havia se apaixonado primeiro pelo outro. Riram alto sob o efeito do vinho. Antes de dormir, depois de quase seis meses, fizeram amor.

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