sábado, 28 de novembro de 2009

Quando a memória nos trai

Assim, quanto mais pensava, mais coisas esquecidas ia tirando da memória.
Compreendi então que um homem que houvesse vivido um único dia, poderia
sem custo passar cem anos numa prisão. Teria recordações suficientes
para não se massar. De certo modo, isto era uma vantagem.

Camus, O Estrangeiro


Camus escreveu um dos melhores livros da história. Um dia tentei explicar porque gosto tanto de O estrangeiro. O que me encanta na literatura é descobrir o sentimento humano pelos olhos de outro. Nos livros, os sentimentos do autor são como pequenas grandes amostras dos sentimentos aos quais todos nós estamos sujeitos. Angústia, felicidade, paixão, dúvida, sentimentos próprios e genéricos representados em histórias, personagens e lugares específicos e comuns. Conhecer uma obra é conhecer um autor, e conhecê-lo é conhecer um pouco mais do próprio homem, conhecer quem somos. Um grande livro é um pouco da verdade humana em forma de literatura.

Em uma das passagens de O estrangeiro, Camus descreve a cela onde está preso o personagem. Lá, por longos meses, o condenado aguarda a execução da sentença. Seus pensamentos são a única atividade possível naquele cubículo, onde está sozinho. Ele então começa a se lembrar do seu quarto, no lugar onde morava. Percorre mentalmente cada parede e móvel do antigo cômodo, catalogando tudo o que existia na habitação. Partia de determinado ponto e dava a volta no quarto, mas a cada vez que iniciava essa trajetória, os objetos se apresentavam com mais detalhes. Quanto mais pensava, mais pormenores apareciam. A atividade, que no início se esgotava rapidamente, passou a levar cada vez mais tempo. Sua memória, única coisa que o preenchia naqueles dias, tornou-se super aguçada.

Cada um tem uma relação própria com a memória. Acho que a minha comparece pouco ao meu dia-a-dia. A maior parte das coisas que vivi, mesmo as mais memoráveis, ficam armazenadas em algum compartimento secreto e só raramente voltam à consciência. Sobre as coisas importantes, quando sou demandado, creio que consigo sempre lembrar aquilo que foi mais essencial, mas frequentemente perco os detalhes que encadeiam o ocorrido. Invejo os que se lembram das histórias mais do que os que se lembram dos detalhes. Mas há situações em que a memória nos trai de forma inversa. Em vez de esquecermos o que gostaríamos de lembrar, lembramos o que gostaríamos de esquecer. Uma frase, um gesto, uma situação. Essas memórias, se pudesse, as guardaria naquele mesmo quartinho secreto, acessando-as somente quando quisesse. Às vezes, ao nos tornarmos prisioneiros de certas lembranças, elas aparecem quando menos esperamos e desejamos, mesmo que não exista aparentemente nenhuma relação entre o passado e o presente. E a cada vez que se apresentam, essas memórias vêm com uma riqueza de detalhes que as perpetua ainda mais fortemente na lembrança. Quanto mais lembramos, mais lembramos. Um episódio assim sempre volta dizendo mais do que havia dito antes. De certo modo, isso é uma vantagem. De qualquer forma, sem a memória nada seríamos. E se as lembranças existem é porque nos fazem. Apenas lamento, de vez em quando, a memória não ser uma ilha de edição.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

À amada futura

Queria não ter que escrever este texto, pois queria que fosse já. Mas se não o escrevesse eu não seria eu e tu não serias tu. Já senti tantas vezes o vento passar por debaixo dos pés enquanto saltava. O frio na barriga de ansiedade. A espera entre dois tempos vazios. A música na cabeça quando saio de casa, o susto de acordar depois do meio-dia. Em todas as felicidades estivestes comigo, ajundando-me a fazer de mim o que sou para ti. Em momentos de incompletude máxima, também senti a tua presença, calada. Da mesma forma, estive contigo, chorando sem disfarçar a tristeza, rindo sem vergonha da alegria. O tempo passa, sempre dizes, e aqui ainda estamos, separados. Até o dia em que o céu azul que me comove nos levará um ao outro. Então seremos gêmeos semprevitelinos. E o silêncio que escuto hoje será o mesmo que tu ouves agora. Este som autoconsciente nos dirá que tudo o que passou foi nada e que é chegada a hora de viver. Sou quieto porque te tenho, e assim és também. Até a vida.

Ensaio sobre um amor perdido

A noite já pesava em madrugada e ele estava rodeado pelo silêncio. Há dias não ouvia a voz de qualquer outra pessoa e acabara de perceber que nem a própria voz lhe era familiar. Ensaiou um ruído qualquer a fim dissipar o terror súbito de que poderia ter emudecido. Suspirou aliviado. Não fora dessa vez que o "mal silente" o acometera. Sentiu-se ridículo e um sorriso traidor lhe escapou. Pensou que aquele sorriso era o primeiro após muito tempo. Não pôde fugir do redemoinho de pensamentos que, como uma tempestade, embaralhava sua cabeça. Apenas pensou que ainda poderia ser feliz. Mas como ser feliz ante tão profundo desconsolo? Essa resposta ele ainda não tinha, como não tinha explicação para o que causara todo esse mal. Sentia-se num transe permanente, fora da realidade, e tudo pairava em suspenso frente à profunda tormenta que enfrentava em seu interior. Não dormia bem, comia pouco e contava segundo após segundo a passagem do tempo, na esperança de chegar a hora... Não sabia bem por qual hora esperava. Apenas esperava um trem que parecia não chegar nunca. E com esse trem viria a felicidade da vida normal. Mas o trem não veio e a noite, o turbilhão de pensamentos e o cansaço o venceram. Dormiu. Sonhou que tinha perdido o grande amor da sua vida. Sonhou que nunca mais veria os olhos doces da pessoa que mais amara, nunca mais sentiria o hálito macio em seus lábios, o carinhoso toque de pele, o aconchego de um abraço. Filhos correndo na praia, viagens em família, grandes prataleiras com fotos e livros, nada disso existia. Um pedido de casamento diante da família, um comunicado de que seria pai, uma cama onde dormiriam todas as noites, tudo era evanecente e escapava antes que ele pudesse tocar. No final, não sobrava nada e ele só vagueava por esquinas vazias e sem sentido, em que de um lado era noite e, do outro, dia. Não sabia qual dos dois escolher, se a dor do sol penetrando em suas pálpebras ou a dor silenciosa das sombras que o devorava por dentro. Por um instante, acordou. Percebeu que a realidade era mais dolorosa e se rendeu ao pesadelo, voltando a dormir.

Mais tarde, desperto, lembrou de uma teoria que tinha sobre as "mil palavras". O nome era uma alusão à idéia de que sempre seria possível convencer alguém escolhendo as palavras certas e encadeado-as da melhor forma. Menos sofista que platônico, acreditava que a verdade se faria transparente e o entendimento e concordância seria possível entre quaisquer dois seres pensantes, desde que fossem honestos e agissem de boa vontade. Pensou que podia reverter tudo com um grande discurso, falado ou escrito, mas logo percebeu que honestidade e boa vontade são conceitos relativos e que sua estratégia tinha tudo para fracassar. Pensou que poderia esperar e deixar o tempo fazer seu trabalho, convencer a consciência de que aquilo tudo estava fora de lugar. Mas a consciência fora justamente o fator inicial desse estado. Viu-se completamente impotente. Fazer nada era deixar a solidão se instalar a ponto de esquecer que jamais fora diferente. Fazer qualquer coisa seria brusco e, de antemão, fracassado. Mas ele deveria estar em algum lugar, não poderia permanecer eternamente naquele estágio de nullité grave. Que fazer? Decidiu que o amor precisava de um tempo. Teria que viver sem qualquer resquício de amor, pois qualquer coisa que se assemelhasse a isso o traria de imediato toda a desesperança da qual tentava se livrar. Mas seria possível viver sem amor? Mover-se de um lugar ao outro, esperar ônibus, assistir à televisão, falar com as pessoas, enfim, existir sem estar guiado por sentimentos de amor? Tinha certeza que não, mas não havia outro remédio senão tentar. Perdera seu amor e, junto com ele, como única forma de sobreviver, deveria perder o amor em todas as suas formas. Aonde isso o levaria não pôde concluir. Só queria que o levasse para longe. Longe o bastante para que o amor em geral deixasse de se confundir com o seu amor e a vida pudesse voltar a fazer algum sentido. Quis tornar-se um estrela fria, mas não podia deixar de ser feito de carne, ossos e músculos. Enquanto pensava isso voltou a dormir. E dia após dia, sempre ao acordar ou prestes a adormecer, perguntava-se o que seria melhor: sofrer dormindo ou acordado. Essa e todas as outras perguntas continuavam sem respostas. E o amor também.

12-5-2009

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Um Tuareg

Nova York, agosto de 2009. Eu e Rafael acabávamos de enfrentar mais um dia de extenuante calor pelas ruas da cidade e já nos preparávamos para enfrentar outra noite de verão igualmente quente. Entre chegar ao albergue, tomar banho e sair novamente, sempre escolhíamos como jantar alguma iguaria callejera, eleita de acordo com a disposição dos nossos estômagos. Pizza place e falafel eram as pedidas de quase todas as horas. Andando pelo quarteirão em busca de um lugar para comer, descobrimos uma lojinha de lanches árabes e fizemos a aposta certa. Durante os poucos dias que nos restavam de viagem, pode-se dizer que freqüentamos assiduamente o lugar. A comida era boa e honesta, mas para falar a verdade, nada muito diferente do que podia ser encontrado numa barraquinha genérica de falafel, das milhares espalhadas por Nova York. Nossa fidelidade à lanchonete se devia principalmente ao senhor que nos atendeu desde a primeira vez que fomos lá. Passando dos 50 anos de idade, pele morena, jeito manso de falar e um bigode discreto, porém marcante: o Jorge Ben das Arábias, como bem apelidado pelo Rafael. “Chicken kebab or lamb kebab?” era pergunta mágica que fazia, como se estivesse disposto a nos permitir uma olhadela numa das preciosas jóias de seu tesouro milenar. Puxamos assunto e perguntamos de onde ele vinha. “Egypt”, respondeu alegremente. Continuamos conversando um pouco mais até que ele olhou bem para mim, como se reconhecesse algo familiar na minha expressão, e disse: - Do you speak arabic?

Na hora, não pude entender porque fiquei tão feliz com a pergunta. A verdade é que me senti lisonjeado. Estava sendo confundido com um árabe! Senti aflorar em mim uma grande satisfação, satisfação por não ser prontamente reconhecido, por não me denunciar, por poder passar despercebido. Algumas pessoas já tinham dito que tenho um quê de árabe, mas ser confundido com um árabe por um próprio árabe, isso é outra coisa...

No dia seguinte, ao sair do albergue pela manhã, no início de mais uma de nossas andanças pela cidade, passamos por acaso em frente à lanchonete. Lá estava o Jorge Ben trabalhando. Não é possível que ele trabalhe desde essa hora da manhã até de noite, pensamos. Ao voltarmos para o jantar, quando já havia escurecido, confirmamos a suspeita. Nosso Tuareg estava lá, demonstrando a mesma disposição para atender todos os que entrassem na loja. Então entendi realmente porque fiquei tão feliz com sua pergunta da noite anterior. Percebi que, naquele instante, o que aflorou em mim foi um sentimento de gratidão por ter sido momentâneamente incluido entre os seus, entre os povos que são submetidos à exploração e precisam migrar em busca de emprego e dignidade, não entre os que exploram. Foi tão bom quanto ser confundido com um boliviano, um argentino, um paraguaio... É um sentimento bobo, talvez, mas verdadeiro. Fez-me crer que resistir é um dever. Senti-me parte da verdade que existe em todas as cidades do mundo. Cairo, La Paz, Assunção, Caracas, Havana, Buenos Aires, Luanda, Argel, Bissau, Maputo, Porto Príncipe. Fui comovido pela verdade do mundo.

sábado, 7 de novembro de 2009

As intermitências da mídia


Quando a luz faltar, encontrarás o silêncio que tinhas perdido

Livro das profecias

Parte I

Acordou antes do despertador. A claridade cinza da manhã entrava pela fresta da cortina e o impediu de voltar a dormir. Virou e revirou na cama, mas se sentia por demais acordado para retornar ao sonho bom que ficou pela metade. A casa em silêncio, caminhou até a cozinha, abriu a geladeira e tomou um copo de leite. Foi até a a porta do apartamento buscar o jornal, mas o capacho estava vazio. Olhou para a porta do vizinho e viu que ali também não havia jornal. Entranho, pensou. O jornal sempre chegava antes que acordasse. Deve ser porque é domingo. Voltou para o quarto e viu que a mulher continuava deitada, em sono profundo. Retornou para a sala e se sentou na poltrona, de frente para a televisão. Pensou que talvez ainda estivesse passando o telejornal da manhã. Ligou o aparelho, mas nada apareceu. Ou melhor, apareceu a típica imagem confusa, em preto e branco, de quando nada é sintonizado. Lembrou que seu pai chamava aquilo de "guerra de mosquitos", os brancos contra os pretos e seus zunidos infernais. Diminuiu o som do aparelho e começou a passar pelos canais. Nenhum deles aparecia. Desligou e ligou novamente a televisão, mas a situação continuou a mesma. Esgueirou-se atrás do móvel para conferir a fiação e viu que todos os cabos coloridos que saiam da parede e dos outros equipamentos estavam corretamente conectados nas entradas de mesma cor da parte de trás do aparelho. Sentou-se novamente na poltrona e repetiu todo o processo: ligou, desligou, ligou de novo, passou por todos os canais, conferiu os fios. Nada. Irritado, pensou em telefonar para a empresa de canais por assinatura e registrar uma queixa, mas desistiu ao imaginar os vários atendentes com quem teria que falar e explicar a situação, sem garantia de que resolvessem o problema. Daqui a pouco volta a funcionar, disse consigo mesmo. Lembrou do rádio. Há muito tempo não ligava o som da sala para ouvir as notícias. Ligou o aparelho. Mexeu no botão giratório que buscava as estações e nenhuma emissora era localizada. Percebeu que o botão do volume apontava para o nível mínimo, mas mesmo ao girar para a posição intermediária e depois para a de nível máximo nenhum ruído saiu pelos amplificadores. Tirou da tomada e ligou novamente. Nada, apenas o som de som algum.

Respirou fundo e deitou-se no sofá. A antena está quebrada, só pode ser. Foi até o intercomunicador, mas não conseguiu fazê-lo funcionar. Calçou os chinelos e desceu as escadas até a portaria, de pijama mesmo. Perguntou para o porteiro e ouviu que não sabia o que estava acontecendo. Nem as câmeras de vigilância do prédio estão funcionando. Outros moradores já haviam descido para procurar o jornal e reclamar do sinal de TV. Sem poder fazer nada, tomou o caminho de casa. Pelo menos este funciona, pensou de dentro do elevador. Entrou em casa e caiu no sofá. Esperou mais de uma hora sem fazer nada até que a mulher acordasse. Tomaram café enquanto ele relatava o ocorrido. A esposa tentou minimizar o problema, dizendo que seria bom ficar um tempo sem TV. Diante da impaciência silenciosa do marido, ela sugeriu que ligasse para a empresa de canais por assinatura. Ele achou que não havia outro jeito. Foi até o telefone, mas o aparelho não dava sinal de linha. Pegou o celular e a única voz que respondeu foi a da gravação que disse não ser possível completar a chamada. Depois de tentar outras tantas vezes fazer uma ligação qualquer, largou o aparelho no canto e voltou para a mesa, inconformado.

Terminaram o desjejum e sentaram no sofá. Ficaram alguns minutos em silêncio até que ela puxou assunto. Falaram um pouco sobre o filme que haviam assistido na véspera, mas logo se calaram. Mais alguns minutos e ela se levantou para lavar a louça do café. Ele voltou para o quarto e deitou novamente na cama. Por volta do meio dia, saíram para almoçar. Foram de carro até um restaurante que sempre frequentavam nos fins de semana. Foram atendidos pelo garçom de sempre, que lhes trouxe as cartas com comidas e bebidas. No fundo do restaurante, havia uma televisão ligada, mas a tela estava toda azul e nenhum som era ouvido. Ele perguntou ao garçom se não era possível sintonizar um canal qualquer, para ouvir as notícias da hora do almoço. Não está funcionando, respondeu o garçom, nenhuma aqui está funcionando. Intrigado com a situação, tentou novamente o celular. O problema persistia. Perguntou ao garçom se seu celular estava funcionando normalmente. O garçom, que ainda não havia tentado fazer nenhuma ligação naquele dia, fez o teste. Não está ligando, constatou. Estranho, disse ao mesmo tempo o casal. Terminaram de almoçar especulando sobre as causas da inusitada situação. Ao voltar para o apartamento, perguntaram ao porteiro se o sinal da televisão havia voltado a funcionar. O porteiro respondeu que não. Bateram à porta do vizinho e constataram que lá também estavam sem TV, sem rádio, sem jornal, internet ou telefone. Passaram o resto do dia no apartamento. Na sala, durante a maior parte do tempo, leram revistas velhas e folhearam os jornais de ontem. Depois do jantar, ela escolheu um disco e abriu uma garrafa de vinho. Lembraram que o último vinho que beberam juntos, sozinhos, foi durante a viagem em que comemoraram as bodas de 10 anos. Falaram daquela viagem e foram lembrando de outras mais antigas, em ordem cronológica inversa, até a primeira viagem que fizeram juntos, a Ilha Grande. Recontaram as histórias de anos atrás e disputaram sobre quem havia se apaixonado primeiro pelo outro. Riram alto sob o efeito do vinho. Antes de dormir, depois de quase seis meses, fizeram amor.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Pensamentos esparsos #01

A maior invenção do homem é o Carnaval.