Assim, quanto mais pensava, mais coisas esquecidas ia tirando da memória.
Compreendi então que um homem que houvesse vivido um único dia, poderia
sem custo passar cem anos numa prisão. Teria recordações suficientes
para não se massar. De certo modo, isto era uma vantagem.
Camus, O Estrangeiro
Compreendi então que um homem que houvesse vivido um único dia, poderia
sem custo passar cem anos numa prisão. Teria recordações suficientes
para não se massar. De certo modo, isto era uma vantagem.
Camus, O Estrangeiro
Camus escreveu um dos melhores livros da história. Um dia tentei explicar porque gosto tanto de O estrangeiro. O que me encanta na literatura é descobrir o sentimento humano pelos olhos de outro. Nos livros, os sentimentos do autor são como pequenas grandes amostras dos sentimentos aos quais todos nós estamos sujeitos. Angústia, felicidade, paixão, dúvida, sentimentos próprios e genéricos representados em histórias, personagens e lugares específicos e comuns. Conhecer uma obra é conhecer um autor, e conhecê-lo é conhecer um pouco mais do próprio homem, conhecer quem somos. Um grande livro é um pouco da verdade humana em forma de literatura.
Em uma das passagens de O estrangeiro, Camus descreve a cela onde está preso o personagem. Lá, por longos meses, o condenado aguarda a execução da sentença. Seus pensamentos são a única atividade possível naquele cubículo, onde está sozinho. Ele então começa a se lembrar do seu quarto, no lugar onde morava. Percorre mentalmente cada parede e móvel do antigo cômodo, catalogando tudo o que existia na habitação. Partia de determinado ponto e dava a volta no quarto, mas a cada vez que iniciava essa trajetória, os objetos se apresentavam com mais detalhes. Quanto mais pensava, mais pormenores apareciam. A atividade, que no início se esgotava rapidamente, passou a levar cada vez mais tempo. Sua memória, única coisa que o preenchia naqueles dias, tornou-se super aguçada.
Cada um tem uma relação própria com a memória. Acho que a minha comparece pouco ao meu dia-a-dia. A maior parte das coisas que vivi, mesmo as mais memoráveis, ficam armazenadas em algum compartimento secreto e só raramente voltam à consciência. Sobre as coisas importantes, quando sou demandado, creio que consigo sempre lembrar aquilo que foi mais essencial, mas frequentemente perco os detalhes que encadeiam o ocorrido. Invejo os que se lembram das histórias mais do que os que se lembram dos detalhes. Mas há situações em que a memória nos trai de forma inversa. Em vez de esquecermos o que gostaríamos de lembrar, lembramos o que gostaríamos de esquecer. Uma frase, um gesto, uma situação. Essas memórias, se pudesse, as guardaria naquele mesmo quartinho secreto, acessando-as somente quando quisesse. Às vezes, ao nos tornarmos prisioneiros de certas lembranças, elas aparecem quando menos esperamos e desejamos, mesmo que não exista aparentemente nenhuma relação entre o passado e o presente. E a cada vez que se apresentam, essas memórias vêm com uma riqueza de detalhes que as perpetua ainda mais fortemente na lembrança. Quanto mais lembramos, mais lembramos. Um episódio assim sempre volta dizendo mais do que havia dito antes. De certo modo, isso é uma vantagem. De qualquer forma, sem a memória nada seríamos. E se as lembranças existem é porque nos fazem. Apenas lamento, de vez em quando, a memória não ser uma ilha de edição.
Em uma das passagens de O estrangeiro, Camus descreve a cela onde está preso o personagem. Lá, por longos meses, o condenado aguarda a execução da sentença. Seus pensamentos são a única atividade possível naquele cubículo, onde está sozinho. Ele então começa a se lembrar do seu quarto, no lugar onde morava. Percorre mentalmente cada parede e móvel do antigo cômodo, catalogando tudo o que existia na habitação. Partia de determinado ponto e dava a volta no quarto, mas a cada vez que iniciava essa trajetória, os objetos se apresentavam com mais detalhes. Quanto mais pensava, mais pormenores apareciam. A atividade, que no início se esgotava rapidamente, passou a levar cada vez mais tempo. Sua memória, única coisa que o preenchia naqueles dias, tornou-se super aguçada.
Cada um tem uma relação própria com a memória. Acho que a minha comparece pouco ao meu dia-a-dia. A maior parte das coisas que vivi, mesmo as mais memoráveis, ficam armazenadas em algum compartimento secreto e só raramente voltam à consciência. Sobre as coisas importantes, quando sou demandado, creio que consigo sempre lembrar aquilo que foi mais essencial, mas frequentemente perco os detalhes que encadeiam o ocorrido. Invejo os que se lembram das histórias mais do que os que se lembram dos detalhes. Mas há situações em que a memória nos trai de forma inversa. Em vez de esquecermos o que gostaríamos de lembrar, lembramos o que gostaríamos de esquecer. Uma frase, um gesto, uma situação. Essas memórias, se pudesse, as guardaria naquele mesmo quartinho secreto, acessando-as somente quando quisesse. Às vezes, ao nos tornarmos prisioneiros de certas lembranças, elas aparecem quando menos esperamos e desejamos, mesmo que não exista aparentemente nenhuma relação entre o passado e o presente. E a cada vez que se apresentam, essas memórias vêm com uma riqueza de detalhes que as perpetua ainda mais fortemente na lembrança. Quanto mais lembramos, mais lembramos. Um episódio assim sempre volta dizendo mais do que havia dito antes. De certo modo, isso é uma vantagem. De qualquer forma, sem a memória nada seríamos. E se as lembranças existem é porque nos fazem. Apenas lamento, de vez em quando, a memória não ser uma ilha de edição.