sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Para Espantalho, também sobredito o Pedro

Sempre tive uma curiosidade especial pelos Largos. Em primeiro lugar, porque são elementos urbanos que não existem em Fortaleza, pelo menos não com esse nome. Quando cheguei ao Rio, olhava para um Largo e não conseguia captar sua função precisa no espaço, algo que fosse próprio de um Largo e o distinguisse, por exemplo, de uma praça. Cheguei a pensar que fosse apenas uma questão de arcaísmo lingüístico: algo que antes recebia o nome de Largo e depois passou a ser praça, mas continuou sendo chamado tradicionalmente pela forma antiga. Seria o caso do Largo do Boticário, por exemplo. Mas, ainda nesse campo, notei que enquanto as praças normalmente recebem nomes diretamente (General Osório, São Salvador, Afonso Pena), o Largo é sempre de alguma coisa ou de alguém: das Neves, da Segunda-feira, da Lapa.

Depois de um tempo fui percebendo que havia algo no Largo que não havia na praça. Pense-se, por exemplo, no Largo dos Guimarães ou no Largo dos Leões. Definitivamente, não são praças. O Largo é tipicamente um espaço largo, comparado ao que o cerca. Nesse sentido, entendo o Largo como um espaço que ficou, algo que não foi propriamente planejado (ainda que possa ter sido). Um espaço largo que sobrou depois que tudo foi construído ao seu redor e que posteriormente foi urbanizado e batizado. Servia como uma referência espacial antes e continuou servindo depois. Mas o Largo de São Francisco também é um Largo, e bem largo. Por isso, um Largo é largo, mas é relativo. Nesse sentido, acho que o Largo é um pouco também como um estado de espírito: cada Largo tem o seu e depende de onde está. Assim, defino o Largo como um espaço que ficou, dotado de um determinado estado de espírito.

Curiosamente, o primeiro lugar em que morei no Rio fica ao lado de um Largo que parece praça, o do Machado. Este, por sua vez, fica perto de uma praça que parece Largo, a José de Alencar. E os dois, Largo e praça, levam nomes de escritores. Talvez eles soubessem explicar melhor que eu o que é um Largo e o que é uma praça. Infelizmente, dado que já se foram, terei de me contentar com minhas próprias especulações metafísicas sobre o assunto. O fato é que lá morei com um cara que tempos depois me escreveu uma música chamada Canção dos Largos. Ela fala de Largos, de um espaço vazio que ficou e de um certo estado de espírito. Ele fez por mim algo lindo que eu não poderia fazer. Coisa de amigo, de irmão.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Pense no Haiti

Outro texto do Eduardo Galeano:

A democracia haitiana nasceu há um instante. No seu breve tempo de vida, esta criatura faminta e doentia não recebeu senão bofetadas. Era uma recém-nascida, nos dias de festa de 1991, quando foi assassinada pela quartelada do general Raoul Cedras. Três anos mais tarde, ressuscitou. Depois de haver posto e retirado tantos ditadores militares, os Estados Unidos retiraram e puseram o presidente Jean-Bertrand Aristide, que havia sido o primeiro governante eleito por voto popular em toda a história do Haiti e que tivera a louca ideia de querer um país menos injusto.

O voto e o veto
Para apagar as pegadas da participação estado-unidense na ditadura sangrenta do general Cedras, os fuzileiros navais levaram 160 mil páginas dos arquivos secretos. Aristide regressou acorrentado. Deram-lhe permissão para recuperar o governo, mas proibiram-lhe o poder. O seu sucessor, René Préval, obteve quase 90 por cento dos votos, mas mais poder do que Préval tem qualquer chefete de quarta categoria do Fundo Monetário ou do Banco Mundial, ainda que o povo haitiano não o tenha eleito nem sequer com um voto.

Mais do que o voto, pode o veto. Veto às reformas: cada vez que Préval, ou algum dos seus ministros, pede créditos internacionais para dar pão aos famintos, letras aos analfabetos ou terra aos camponeses, não recebe resposta, ou respondem ordenando-lhe:
– Recite a lição. E como o governo haitiano não acaba de aprender que é preciso desmantelar os poucos serviços públicos que restam, últimos pobres amparos para um dos povos mais desamparados do mundo, os professores dão o exame por perdido.

O álibi democrático
Em fins do ano passado, quatro deputados alemães visitaram o Haiti. Mal chegaram, a miséria do povo feriu-lhes os olhos. Então o embaixador da Alemanha explicou-lhe, em Port-au-Prince, qual é o problema:
– Este é um país superpovoado, disse ele. A mulher haitiana sempre quer e o homem haitiano sempre pode.

E riu. Os deputados calaram-se. Nessa noite, um deles, Winfried Wolf, consultou os números. E comprovou que o Haiti é, com El Salvador, o país mais superpovoado das Américas, mas está tão superpovoado quanto a Alemanha: tem quase a mesma quantidade de habitantes por quilómetro quadrado.

Durante os seus dias no Haiti, o deputado Wolf não só foi golpeado pela miséria como também foi deslumbrado pela capacidade de beleza dos pintores populares. E chegou à conclusão de que o Haiti está superpovoado... de artistas.

Na realidade, o álibi demográfico é mais ou menos recente. Até há alguns anos, as potências ocidentais falavam mais claro.

A tradição racista
Os Estados Unidos invadiram o Haiti em 1915 e governaram o país até 1934. Retiraram-se quando conseguiram os seus dois objectivos: cobrar as dívidas do City Bank e abolir o artigo constitucional que proibia vender plantações aos estrangeiros. Então Robert Lansing, secretário de Estado, justificou a longa e feroz ocupação militar explicando que a raça negra é incapaz de governar-se a si própria, que tem "uma tendência inerente à vida selvagem e uma incapacidade física de civilização". Um dos responsáveis da invasão, William Philips, havia incubado tempos antes a ideia sagaz: "Este é um povo inferior, incapaz de conservar a civilização que haviam deixado os franceses".

O Haiti fora a pérola da coroa, a colónia mais rica da França: uma grande plantação de açúcar, com mão-de-obra escrava. No Espírito das leis, Montesquieu havia explicado sem papas na língua: "O açúcar seria demasiado caro se os escravos não trabalhassem na sua produção. Os referidos escravos são negros desde os pés até à cabeça e têm o nariz tão achatado que é quase impossível deles ter pena. Torna-se impensável que Deus, que é um ser muito sábio, tenha posto uma alma, e sobretudo uma alma boa, num corpo inteiramente negro".

Em contrapartida, Deus havia posto um açoite na mão do capataz. Os escravos não se distinguiam pela sua vontade de trabalhar. Os negros eram escravos por natureza e vagos também por natureza, e a natureza, cúmplice da ordem social, era obra de Deus: o escravo devia servir o amo e o amo devia castigar o escravo, que não mostrava o menor entusiasmo na hora de cumprir com o desígnio divino. Karl von Linneo, contemporâneo de Montesquieu, havia retratado o negro com precisão científica: "Vagabundo, preguiçoso, negligente, indolente e de costumes dissolutos". Mais generosamente, outro contemporâneo, David Hume, havia comprovado que o negro "pode desenvolver certas habilidades humanas, tal como o papagaio que fala algumas palavras".

A humilhação imperdoável
Em 1803 os negros do Haiti deram uma tremenda sova nas tropas de Napoleão Bonaparte e a Europa jamais perdoou esta humilhação infligida à raça branca. O Haiti foi o primeiro país livre das Américas. Os Estados Unidos haviam conquistado antes a sua independência, mas tinha meio milhão de escravos a trabalhar nas plantações de algodão e de tabaco. Jefferson, que era dono de escravos, dizia que todos os homens são iguais, mas também dizia que os negros foram, são e serão inferiores.

A bandeira dos homens livres levantou-se sobre as ruínas. A terra haitiana fora devastada pela monocultura do açúcar e arrasada pelas calamidades da guerra contra a França, e um terço da população havia caído no combate. Então começou o bloqueio. A nação recém nascida foi condenada à solidão. Ninguém lhe comprava, ninguém lhe vendia, ninguém a reconhecia.

O delito da dignidade
Nem sequer Simón Bolívar, que tão valente soube ser, teve a coragem de firmar o reconhecimento diplomático do país negro. Bolívar havia podido reiniciar a sua luta pela independência americana, quando a Espanha já o havia derrotado, graças ao apoio do Haiti. O governo haitiano havia-lhe entregue sete nave e muitas armas e soldados, com a única condição de que Bolívar libertasse os escravos, uma ideia que não havia ocorrido ao Libertador. Bolívar cumpriu com este compromisso, mas depois da sua vitória, quando já governava a Grande Colômbia, deu as costas ao país que o havia salvo. E quando convocou as nações americanas à reunião do Panamá, não convidou o Haiti mas convidou a Inglaterra.

Os Estados Unidos reconheceram o Haiti apenas sessenta anos depois do fim da guerra de independência, enquanto Etienne Serres, um génio francês da anatomia, descobria em Paris que os negros são primitivos porque têm pouca distância entre o umbigo e o pénis. Por essa altura, o Haiti já estava em mãos de ditaduras militares carniceiras, que destinavam os famélicos recursos do país ao pagamento da dívida francesa. A Europa havia imposto ao Haiti a obrigação de pagar à França uma indemnização gigantesca, a modo de perdã por haver cometido o delito da dignidade.

A história do assédio contra o Haiti, que nos nossos dias tem dimensões de tragédia, é também uma história do racismo na civilização ocidental.

18/jan/2010 - disponível em http://resistir.info/

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Ecos

Um dia, você lembra, vendi a TV
e comprei um colchão bem grande
pra te receber
Larguei o trabalho, o carro, o apê
e disse: meu único bem é você
Mas quando achei que estava
ao meu lado
só havia um bilhete
deixado

Pra onde vai todo o amor não amado?
A saudade que se perde no tempo?
Os suspiros que voam ao vento?
As palavras repetidas na solidão?
Os pensamentos na escuridão?

Dizem que se o universo tiver fim
e é bem possível que seja assim
os sons do mundo um dia voltarão
e então ouviremos os ecos
que desde os australopitecos
atravessaram a fria imensidão

Então fico pensando
pra onde vai todo o amor não amado
será que, um dia, ele volta acumulado?




sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Transcrição diurna

"Na segunda metade do século, o melhor açúcar do mundo brotava do solo esponjoso das planuras da costa do Haiti, um colônia francesa que nessa época se chamava Saint Domingue. Ao norte e a oeste, Haiti converteu-se em sorvedouro de escravos: o açúcar exigia cada vez mais braços. Em 1786, chegaram à colônia 27 mil escravos, e no ano seguinte 40 mil. No outono de 1791, explodiu a revolução. Num só mês, setembro, duzentas plantações de cana foram tomadas pelas chamas; os incêndios e os combates sucederam-se sem trégua à medida que os escravos insurretos iam empurrando os exércitos franceses até o oceano. Os barcos zarparam carregando cada vez mais franceses e cada vez menos açúcar. A guerra derramou rios de sangue e devastou as plantações. Foi longa. O país, em cinzas, ficou paralisado; em fins do século a produção caiu verticalmente. “Em novembro de 1803 quase toda a colônia antigamente florescente, era um grande cemitério de cinzas e escombros”, diz Lepkowski. A revolução haitiana tinha coincidido, e não só no tempo, com a revolução francesa, e Haiti sofreu também, na própria carne, o bloqueio contra a França da coalizão internacional: a Inglaterra dominava os mares. Porém logo sofreu, à medida que sua independência ia-se fazendo inevitável, o bloqueio da França. Cedendo à pressão francesa, o Congresso dos Estados Unidos proibiu o comércio com Haiti, em 1806. Logo em 1825, a França reconheceu a independência de sua antiga colônia, mas em troca de uma gigantesca indenização em dinheiro. Em 1802, pouco depois de Toussaint-Louverture caudilho dos exércitos escravos ser preso, o general Leclerc escreveu a seu cunhado Napoleão: “Eis minha opinião sobre o país: há que suprimir todos os negros das montanhas, homens e mulheres, conservando-se somente as crianças menores de doze anos, exterminar a metade dos negros nas planícies e não deixar na colônia nem um só negro que use jarreteiras". O trópico vingou-se de Leclerc, pois morreu “agarrado pelo vômito negro” apesar das esconjurações mágicas de Paulina Bonapart sem poder cumprir seu plano, porém a indenização em dinheiro tornou-se uma pedra esmagadora sobre as cosas dos haitianos independentes que haviam sobrevivido aos banhos de sangue das sucessivas expedições militares enviadas contra eles. O país nasceu em ruínas e não se recuperou jamais: hoje é o mais pobre da América Latina."

As veias abertas, Eduardo Galeano.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Pensamentos esparsos #02

A pior dor é a que se esconde por trás de um sorriso.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Avatar

Não sou crítico de arte. Procuro embasar minhas avaliações sobre livros, filmes, peças, quadros e esculturas no pouco que estudei sobre essas matérias e nos sentimentos que cada obra provoca em mim. Escrevo ainda sob o efeito do filme Avatar e é sobre ele que gostaria de falar. É possível que a impressionante gama de efeitos visuais aplicada ao filme tenha me impressionado mais do que meu espírito de isenção gostaria, mas não posso deixar de reconhecer que, além do show de computação gráfica, Avatar contém uma mensagem importante sobre todos nós. Cabe ressaltar, em primeiro lugar, que os efeitos visuais utilizados no filme, longe de comprometer a narrativa e desviar o foco da atenção, potencializa a história e as sensações do espectador, ao menos assim se passou comigo. O filme está repleto de cenas em que a natureza é tão bonita e exuberante que faltam palavras para descrevê-la, assim como acontece quando se chega ao topo de uma montanha para assistir ao sol se por no mar. Toda essa maravilha é ainda intensificada pelos recursos 3D, que merecem uma observação a parte. No começo do filme, senti uma certa vertigem ao me deparar com imagens tão assustadoramente reais. Tudo parecia mais real que a própria realidade. Senti-me um pouco sufocado e tive ímpetos de tirar os óculos 3D para respirar um pouco do real, mas aos poucos fui me adaptando e, depois de quse 3 horas de filme, confesso que saí da sala achando a realidade um pouco sem graça.

Mas, como disse, a exuberância visual não compromete o enredo, pelo contrário. Isso acontece justamente porque o centro da história é a própria natureza em relação com os homens. É certo que se pode argumentar contra o típico roteiro da narrativa clássica norte-americana (com herói, par romântico, vilão e final feliz), mas acredito que o conjunto de sensações transmitidas pelo filme consegue o êxito de expandir a fronteira das limitações impostas pela estrutura convencional de narração. Avatar consegue tratar do tema homem-natureza de forma inesperadamente não-piegas para um filme comercial. De quebra, liberta nossa imaginação e nos permite visualizar uma sociedade bem estruturada cujos valores essenciais são radicalmente distintos daqueles que vigoram no nosso mundo. Decerto há muito de hominização imputada aos Na'vi, mas isso não ofusca a imagem principal de um povo que vive dentro da natureza, ao invés de tratá-la como algo alheio, externo e desligado da existência social. Além de mostrar outra forma de relação sociedade-natureza, o filme não se furta a exibir - talvez de forma caricata (mas ainda assim válida) - a miséria ética do comportamento guiado por interesses capitalistas e sua trágica simbiose entre economia, ciência e guerra. Esse padrão de comportamento está presente no dia-a-dia das nossas vidas.

Entrei no cinema cético com relação à celebração em torno do filme. É certo que, diante da enorme estrutura industrial criada em torno do circo cinematográfico, a celebração superficial e comercialóide é inevitável. Afinal, não se pode esperar muito de uma platéia que transforma o Capitão Nascimento em herói nacional, nem de uma crítica babaca que simplesmente não entendeu Tropa de Elite, apenas para citar um exemplo. De toda forma, pelos motivos que tentei expor, saí do cinema com a sensação de ter presenciado, para dizer o mínimo, uma grande experiência audiovisual (muito mais impressionante que as telas de plasma com transmissão high definition - que tornaram impossível esconder os cravos na cara do Will Smith). Acho mesmo que a forma de fazer cinema e a relação entre ficção e realidade está prestes a atingir um ponto angular. Por outro lado, e mais importante, o filme funciona como alegoria da destruição que o homem provoca a si mesmo, desconhecendo culturas, conhecimentos, vidas, povos inteiros, destruindo tudo na busca desenfreada por riqueza e poder. Funciona também como previsão de um futuro ainda mais sombrio para a humanidade. Enfim, a ótima combinação entre beleza visual e enredo faz suspirar e me permite dizer que o filme aborda de forma digna temas importantes para todos nós: homens e sociedade.

Por último, gostaria de dizer que essas reflexões inspiraram um pensamento que talvez faça algum sentido. Se nem toda a miséria humana globalizada, gerada ao longo de séculos, foi capaz de sensibilizar o homem e fazer a humanidade perceber o quão trágica é a existência nos moldes em que vivemos, talvez somente uma verdadeira ameaça de hecatombe ambiental nos faça despertar, através da possibilidade de uma destruição completa da raça humana, para a realidade cruel que a socidade imputa diariamente a cada um de nós. Perceber que o sistema é incompatível com o ambiente do qual emergimos pode nos fazer perceber como ele é incompatível com a própria liberdade humana. Talvez esse seja o melhor uso que o discurso verde, tão banalizado e cinicamente apropriado, pode assumir.