sábado, 24 de outubro de 2009

Testamento

"Ao longo da vida, não acumulei muitas posses. Na verdade, pensei sempre que poderia me desfazer de tudo antes do derradeiro tango. Mas a leitura desta carta-testamento é sinal de que a viagem foi feita de forma inesperada. Sendo assim, deixo os seguintes bens às únicas pessoas que poderiam, com dignidade, recebê-los:

1- A casa em Arraial do Cabo, cidade onde vivi tranqüilamente meus últimos anos e na qual cultivei inestimáveis amizades, fica para meu filho Pedro. Seus dois cômodos não constituem propriamente um palácio, mas creio que será de bom proveito para passar os fins de semana ou períodos de repouso.

2- O fusca azul celeste, ano 73, fica para meu neto Pedrinho, que já completou 18 anos e pode, enfim, usar sua carta para dirigir uma verdadeira máquina, prodígio mecânico da indústria alemã.

3- A minha poupança, que não é grande coisa, também fica para meu neto Pedrinho. Creio que seu pai, engenheiro bem sucedido, não verá grande valor nessas merrecas guardadas debaixo do colchão (na verdade, estão na minha conta do banco). Pedrinho, use para viajar.

4- Por último, meus mais preciosos bens, deixo todos os livros, reunidos durante longos anos e que hoje somam uma quantidade justa para chamar biblioteca, para meu filho Pedro. Sei que você nunca deu grande importância aos clássicos e às minhas afinidades teórico-literárias, mas penso que minha partida pode servir como último incentivo para que tente enxergar o mundo além das matemáticas. O inventário de todas as obras está no caderno dentro da gaveta, embaixo da vitrola.

Pensei que estas talvez sejam minhas últimas palavras. Para os que não me conheceram, não poderia dizer tudo. Para os que me conheceram, não precisaria dizer nada. Meus filho e neto, gostaria apenas de afirmar mais uma vez que sua mãe e avó foi a coisa mais importante de toda a minha vida. Sabem que há muito tempo não acredito em deus, mas confesso que, neste momento, torço muito para que ele exista e me permita, uma vez mais, estar perto da minha querida.

PS: Gostaria de ser enterrado aqui mesmo, perto do mar."

- Bem, é isso - disse Pedro ao terminar de ler.

Pedrinho tinha a voz embargada, não pôde dizer nada. Os dois se levantaram do sofá vermelho onde o avô costumava receber os amigos, olharam mais uma vez as fotografias e a casa que os cercavam e saíram. No carro, de volta para o Rio, Pedrinho perguntou:

- Pai, você vai trazer os livros para nossa casa?

- Claro que não. Já falei com um livreiro, ele cuidará de tudo.

- Mas pai...

- Já falamos sobre isso, Pedrinho - disse em tom taxativo.

Após um breve silêncio, o pai completou:

- É um livreiro virtual.

* * *

Alguns dias depois, a caminhonete de uma empresa de transportes pára em frente ao apartamento. Pedrinho atende o interfone radiante:

- Pode subir!

O pai, curioso, pergunta do que se trata.

- Chegaram meus livros - responde o filho.

- Livros?

- Comprei com a poupança deixada pelo vovô.

- De onde são? - indaga Pedro.

- De um livreiro virtual - sorri Pedrinho.

Um comentário:

Pedro David disse...

Lindo! Vou te ligar pra falar desse texto.

Beijo